
o leitor ideal é o escritor no instante anterior à escrita.
o leitor ideal não reconstroi um texto: recria-o.
o leitor ideal tem uma capacidade ilimitada de esquecimento.
o leitor ideal não se interessa pelos escritos de michel houllebecq.
o leitor ideal sabe aquilo que o escritor só intui.
o leitor ideal subverte o texto.
o leitor ideal não se fia na palavra do escritor.
o leitor ideal procede por acumulação: cada vez que lê um texto, agrega um nova capa de memória ao conto.
todo o leitor ideal é um leitor associativo. lê como se todos os livros fossem a obra de um único escritor, prolífico e intemporal.
ao fechar um livro, o leitor ideal sente que, se não o tivesse lido, o mundo seria mais pobre.
o leitor ideal é como joseph joubert que arrancava dos livros da sua biblioteca as páginas que não gostava.
o leitor ideal tem um sentido de humor perverso.
o leitor ideal lê como se toda a literatura fosse anónima.
o leitor ideal usa com prazer o dicionário.
o leitor ideal julga o livro pela sua capa.
paolo e francesca não eram leitores ideais, já que confessaram a dante que, depois do primeiro beijo, não leram mais.
o leitor ideal tinha dado o beijo e continuava a ler. um amor não exclui o outro.
o leitor ideal partilha a ética de dom quixote, o desejo de madame bovary, o espírito aventureiro de ulisses, a desfaçatez de zazie, enquanto dura a narração.
o leitor ideal é politeísta.
robinson não é um leitor ideal. lê a biblia para encontrar respostas. o leitor ideal lê para encontrar perguntas.
todo o livro, bom ou mau, tem o seu leitor ideal.
para o leitor ideal, todos os livros são, em certa medida, a sua autobiografia.
o leitor ideal tem uma nacionalidade precisa.
às vezes um livro deve esperar vários séculos para encontrar o seu leitor ideal. blake precisou de 150 anos para encontrar northrop frye.
pinochet, ao proibir dom quixote por temer que o livro pudesse ler-se como uma defesa da desobediência civil, foi o seu leitor ideal.
'há três classes de leitores: a primeira, aqueles que gostam de um livro sem o julgarem; a terceira, aqueles que o julgam sem gostarem dele; a outra, entre as duas, os que julgam apesar de gostarem ou gostam apesar de julgarem. estes últimos dão nova vida a uma obra de arte, e não são muitos' disse goethe numa carta a johann friedrich rochlitz.
os leitores que se suicidaram depois de lerem werther não eram leitores ideais e apenas meros sentimentais.
o leitor ideal deseja chegar ao fim do livro e, ao mesmo tempo, que ele não acabe.
o leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente que o escritor. e por isso não o diminui.
as boas intenções não fazem leitores ideais.
o marquês de sade: 'só escrevo para quem pode entender-me, e estes leram-me sem correrem perigo'.
o marquês de sade enganou-se: o leitor ideal corre sempre perigo.
o escritor nunca é o seu próprio leitor ideal.
a literatura depende, não de leitores ideais, mas de leitores suficientemente bons.
alberto manguel
excertos da crónica 'a pie de página'
babelia (el pais),
29.11.2003
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